Há 25 anos, o dia 27 de agosto é, oficialmente, o Dia do Rio Paranapanema em São Paulo. A data foi instituída pela Lei 10.488/99, criada e aprovada pela Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo.
A data ainda marca o aniversário de 45 anos da Lei 2.090/1979, que proibiu a instalação de indústrias de alto risco de poluição, em especial de papel e celulose, na região do Rio. Esta lei, inclusive, foi o mote para a criação da data comemorativa, 20 anos depois.
Além dessas normas, o Estado de São Paulo, através da Constituição Paulista construída pelos parlamentares da Alesp, considera o Vale do Paranapanema como área especialmente protegida.
No entanto, para a presidente da Organização Ambiental Teyque’-Pe’ (OAT), entidade que atua na defesa do Rio há 23 anos em Piraju, Naomi Corcovia, a data não deve ser entendida como uma celebração.
“27 de agosto é um dia de luta, de tomada de consciência e de ação, não é um dia de festejar, até porque o rio não faz aniversário. É um dia de brigar pelo Rio Paranapanema e de mostrar que ele existe e que daqui a pouquinho ele vai respirar por aparelhos se a sociedade não tomar atitudes”, defende.
Com isso, este dia busca sintetizar a luta de quase cinco décadas das comunidades locais e da Assembleia Legislativa em defesa do Rio Paranapanema e jogar luz sobre as principais preocupações de especialistas e gestores para o futuro.
O Rio Paranapanema
Com 929 quilômetros de extensão, o Rio Paranapanema é um dos mais importantes do estado, ao lado do Rio Grande, na divisa com Minas Gerais, e do Tietê, que passa pela Capital. O Panema, como é conhecido, serve como divisa natural entre os estados de São Paulo e Paraná.
O Paranapanema é o principal rio da Bacia Hidrográfica e é fundamental para a população do sul do estado. “Abastecimento de água em diversas cidades, é utilizado para geração de energia elétrica, para navegação em alguns trechos e abriga uma diversidade muito grande de fauna e flora. A gente tem muitas áreas de preservação, como o parque Morro do Diabo e a Estação Ecológica do Paranapanema. Tem um extraordinário potencial de agricultura irrigada, principalmente no Alto e Médio Paranapanema, e tem importantes reservas de Cerrado e de Mata Atlântica”, lista a secretária executiva do Comitê da Bacia Hidrográfica (CBH) do Paranapanema, Suraya Modaelli.
Por ser um rio interestadual, o Panema é gerido por entidades federais. Instituído em 2012, o CBH tem apoio da Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico (ANA), é composto pelo Poder Público, pesquisadores e sociedade civil e auxilia na gestão dos rios da Bacia.
Além das importâncias citadas, as águas do Rio possuem um enorme potencial turístico, o que fez com que diversas cidades do estado se desenvolvessem. “É bastante usado para recreação nos finais de semana e ainda oferece muitos benefícios para a sociedade como um todo, ambientais e econômicos”, destaca o engenheiro agrônomo e professor de Hidrogeografia na Unesp Ourinhos, Rodrigo Manzione.
O pesquisador cita cidades como Piraju, Avaré, Ourinhos e Rosana como exemplos de economias fortemente ligadas ao ecoturismo no Rio. As três últimas são conhecidas pelos grandes lagos formados pelo represamento das águas do Panema para geração de energia elétrica.
A construção de barragens, inclusive, é um ponto chave para entender a dinâmica do Rio. “Não existem mais, praticamente, áreas vivas, trechos originais do Rio Paranapanema. Ele era todo de corredeiras. Agora é o efeito cascata das hidrelétricas, todo barrado, são águas paradas”, explica Naomi Corcovia, da OAT.
Piraju é a cidade onde está um dos poucos trechos “originais” do Panema. São 7 quilômetros repletos de corredeiras que levam o nome da cidade para o mundo. “A canoagem slalom é super expressiva em Piraju. O Pepê Gonçalves, que representou o Brasil nas Olimpíadas, é cria das corredeiras daqui. Se não fosse o rio corrente, ele não teria o destaque e a relevância no esporte”, afirma a presidente da ONG.
Além dos esportes radicais, a manutenção de um trecho “vivo” do Rio, segundo Naomi, dá sobrevida a algumas coisas que não existem no restante do Panema, como peixes de corredeira e rochas que foram submersas pelas barragens em outros trechos do Rio.
“Existe também uma relação de carinho, de afeto e de amor das pessoas. Em Piraju, a única pauta que mobiliza a cidade inteira, seja de direita ou esquerda, pobres ou ricos, é a defesa das corredeiras do Rio Paranapanema”, conta Naomi. O curso das águas é ainda o cartão postal da cidade, que é “cortada” ao meio pela calha do Panema.
Os múltiplos usos do Rio Paranapanema só são possíveis porque ele ostentou, durante muito tempo, o título de rio mais limpo do país. “Hoje só não podemos falar que é o mais limpo do Brasil, porque faz tempo que não se faz essa pesquisa. Em questão de qualidade de água, é um rio muito preservado”, defende a coordenadora do escritório que operacionaliza as atividades do CBH, Priscilla Rocha.
Todas as ações realizadas no dia 27 de agosto só ocorrem por causa de uma norma criada na Alesp há 45 anos. A Lei 2.090/1979, dos ex-deputados Mantelli Neto e Antonio Salim Curiati, foi sancionada neste dia pelo governador Paulo Maluf. Apesar de constar como de autoria de Mantelli Neto, o texto aproveitava um projeto de 1977 de Curiati, que foi aprovado pela Casa e vetado pelo governador da época.
Na justificativa, Curiati já defendia, há quase 50 anos, que o progresso não podia atropelar a proteção ao meio ambiente. “Com frequência, nos chegam notícias de que o homem, na sua ânsia de progresso, vai pouco a pouco, destruindo a mãe natureza em nosso Estado. A produção de papel e celulose é a segunda atividade industrial que mais polui a água dos rios e represas. Os despejos das fábricas de celulose são venenosos e, consequentemente, nocivos à flora, à fauna e ao homem.”
A citação à produção de papel não é à toa. O que acontecia na época é que uma empresa de produção de papel planejava se instalar na cidade de Angatuba, às margens do Panema, pouco antes de Piraju. Entretanto, a população das cidades não concordou com a possível chegada e protestou massivamente. As manifestações fizeram com que, em 1977, a Alesp instalasse uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) para investigar a “conveniência da instalação dessa indústria”.
“É um marco aqui na Bacia do Paranapanema essa luta das ONGs pelo meio ambiente. Chamou a atenção de toda a sociedade. Temos uma história de um ativismo muito grande da sociedade civil desde essa época até hoje no comitê. É a questão de ter o planejamento de onde vão se instalar indústrias, do que nós queremos para a nossa região”, comenta Suraya.
A luta dos cidadãos em defesa das águas do Paranapanema repercutiu por toda a região. O fundador da ONG Rio Pardo Vivo, Luiz Cavalchuki, que tinha apenas 9 anos na época, diz que esse episódio marcou a memória. “Você imagina como era naquela época de Ditadura Militar você ir contra a instalação de uma indústria. Naquele momento nem se falava em meio ambiente. O levante foi grande e as pessoas tomaram muita borrachada nas costas. Essa lei foi muito importante naquela época e é até hoje”, conta.
Originalmente, o projeto previa a proibição de qualquer indústria que trouxesse alto risco de poluição. Entretanto, Maluf vetou boa parte do texto, mas manteve o trecho que impedia a produção de papel e celulose, foco das discussões naquele momento.
“Foi um fator importante que conservou o rio daquela época até hoje. Temos poucas fontes poluidoras do Rio Paranapanema e as que temos chegam com os efluentes tratados. Isso fez com que o rio não perdesse a característica de ter água boa”, afirma Cavalchuki.
“Nossa preocupação aqui, como ribeirinhos, é essa: não deixar os nossos rios e riachos terem o modelo de gestão do Rio Tietê, por exemplo. Ninguém quer andar em um rio poluído”, completa o fundador da Rio Pardo Vivo. A ONG de Luiz surgiu em 2002 como um projeto dele e de alguns amigos que andavam de caiaque no Rio Pardo, terceiro maior afluente do Paranapanema.
Hoje, a entidade compõe o CBH e realiza eventos de limpeza, reflorestamento e repovoamento de peixes nos Rios Pardo e Paranapanema. Cavalchuki explica que busca sempre envolver a comunidade local, em especial os mais jovens, nas atividades da organização. “Entendemos que é passando para as crianças que vamos perpetuar uma cultura preservacionista”, comenta.
Em outro trecho da justificativa do projeto de lei, Curiati lembra de citar a importância de estimular o desenvolvimento da região, incentivando a implantação de indústrias que não interfiram no meio ambiente. Priscilla Rocha, do CBH, destaca que, passadas mais de 4 décadas, a norma não freou o desenvolvimento econômico da região.
“As indústrias se prepararam para que atendessem à lei. A gente tem regiões industrializadas, economicamente ativas e produtivas preparadas com tecnologias para que tratem os efluentes e não causem nenhum impacto maior. A Lei conseguiu manter o equilíbrio”, afirma Priscilla.
Desafios
Apesar do trabalho desenvolvido pelas organizações locais e do trabalho legislativo feito pela Alesp, a natureza não deixa de impor desafios e preocupações aos órgãos gestores do Paranapanema. Atualmente, a principal preocupação é a falta de chuvas que vem acometendo a região.
“Nós temos passado por crises hídricas constantes. Uma delas perdurou de 2018 até dezembro de 2022 e a grande questão é que não estava chovendo. As chuvas diminuíram e os reservatórios baixaram muito. Em Avaré, por exemplo, o reservatório baixou oito metros. Que turista quer andar na lama para ir na água? Então, ainda teve um impacto econômico muito grande”, explica Rodrigo Manzione.
Em 2024, o cenário parece não ter mudado. Manzione explica que as chuvas torrenciais que atingiram o Rio Grande do Sul entre maio e junho deste ano fizeram com que chegasse menos água ao sudeste. “O nosso desastre está sendo um pouco mais silencioso. As coisas estão muito secas, a qualidade do ar baixa, então, pela falta de chuva que a gente teve do começo do ano até agora, já foi ligado o sinal de alerta”, complementa.
Segundo o professor, para que não falte água na Bacia, é necessário cuidar de quem fornece água para os rios. “O que podemos fazer é ter programas de revitalização e recuperação de nascentes e de bacias hidrográficas, aplicar o código florestal, cuidar das áreas de proteção permanente dos rios. Esses são cuidados que poderiam ser feitos a curto e médio prazo”, defende Manzione.
“Tem que ser uma política de Estado. A gente tem um rio ainda com volume de água considerável, numa qualidade boa, então temos que cuidar, estar atentos às possíveis ameaças e entender o rio como o sistema que faz parte da nossa vida. A gente depende do Rio e o Rio depende da gente. Com chuvas irregulares, a nossa responsabilidade aumenta. Se formos ficar esperando a chuva, talvez não tenhamos um futuro muito próspero para a região do Paranapanema”, complementa o pesquisador.
Suraya Modaelli, do Comitê da Bacia do Paranapanema, afirma que tem recebido demandas de diversos setores para que as atenções do Colegiado se voltem ao tema. “A gente foi demandado pelas entidades que tratam de turismo, pelas prefeituras, pelo Ministério Público, para que o comitê pudesse ajudar para minimizar os impactos que o rebaixamento dos reservatórios estava causando”, conta.