Luciana Constantino, da Agência FAPESP
Pesquisa publicada em dezembro na revista científica European Child & Adolescent Psychiatry mostra uma associação entre pobreza infantil e maior propensão para desenvolver transtornos externalizantes, como déficit de atenção e hiperatividade, na juventude, especialmente entre mulheres.
Os pesquisadores concluíram que a pobreza multidimensional e a exposição a situações estressantes, entre elas mortes e conflitos familiares, são fatores de risco evitáveis que precisam ser enfrentados na infância para reduzir o impacto de transtornos mentais na fase adulta. Foram levados em consideração o nível educacional dos pais, as condições de moradia e infraestrutura das famílias, acesso a serviços básicos, entre outros.
O trabalho acompanhou, durante cerca de sete anos, 1.590 alunos de escolas públicas de Porto Alegre (RS) e de São Paulo, que participaram de três etapas de avaliação, sendo a última delas entre 2018 e 2019. Esses estudantes fazem parte de uma grande pesquisa de base comunitária, que, desde 2010, segue 2.511 famílias com crianças e jovens, à época com idades entre 6 e 10 anos, dentro do Estudo Brasileiro de Coorte de Alto Risco para Transtornos Psiquiátricos na Infância (BHRC).
Também conhecido como Projeto Conexão – Mentes do Futuro, o BHRC é considerado um dos principais acompanhamentos sobre riscos de transtornos mentais em crianças e adolescentes já desenvolvidos na psiquiatria brasileira. É realizado pelo Instituto Nacional de Psiquiatria do Desenvolvimento para a Infância e Adolescência (INPD), apoiado pela FAPESP e pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq).
O instituto tem como coordenador-geral o professor do Departamento de Psiquiatria da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP) Eurípedes Constantino Miguel Filho. Conta com mais de 80 professores e cientistas de 22 universidades brasileiras e internacionais.
“Parece senso comum dizer que a pobreza pode ter impacto futuro no desenvolvimento de problemas de saúde mental. Porém ainda não havia no Brasil uma pesquisa que permitisse analisar o desenvolvimento da criança até o começo da vida adulta baseado em avaliações psiquiátricas feitas em mais de um momento. Da forma como realizamos o trabalho, foi possível observar a tendência tanto na adolescência como no início da idade adulta”, explica a pesquisadora Carolina Ziebold, do Departamento de Psiquiatria da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), e primeira autora do artigo.
Os diagnósticos psiquiátricos foram obtidos por meio da Avaliação de Desenvolvimento e Bem-estar (DAWBA, na sigla em inglês), aplicada na infância, depois na adolescência (quando os alunos tinham idade média de 13 anos e 5 meses) e na faixa etária dos 18 anos. O estudo levou em consideração distúrbios externalizantes e também os internalizantes, como depressão e ansiedade. No entanto, no caso desses últimos não houve registro significativo no resultado geral.
Para analisar as carências das famílias, os cientistas aplicaram questionários socioeconômicos. No total, 11,4% da amostra estava enquadrada em níveis de pobreza.
“Essa avaliação psiquiátrica em três momentos permitiu obter um resultado consistente. Isso porque houve variação ao longo do tempo. Crianças de famílias pobres chegaram a ter níveis de transtornos externalizantes menores do que as de não pobres no início do acompanhamento. Mas, depois de alguns anos, a curva se inverteu, com um crescimento constante dos distúrbios entre crianças de famílias pobres. A probabilidade de apresentar problemas entre elas foi de 63%, enquanto entre as de não pobres diminuiu no período”, afirma Ziebold.
Desigualdade de gênero
Os autores do artigo destacaram que, nas análises estratificadas por gênero, a pobreza infantil teve consequências prejudiciais especialmente para as mulheres.
“Esse resultado chamou muito a atenção e deve ser um dos mais relevantes. Geralmente os transtornos externalizantes são mais comuns em homens. Nossa hipótese é que as meninas pobres têm menos chance de diagnóstico precoce de problemas, seja na família ou na escola. Além disso, elas assumem mais tarefas desde cedo em casa, como cuidar de irmãos mais novos e de pessoas doentes. Essa sobrecarga expõe a mais eventos estressantes, que aumentam as chances de apresentar problemas mentais quando adultas”, diz a pesquisadora.
Os transtornos externalizantes também foram particularmente prejudiciais para as mulheres nos resultados educacionais, principalmente em relação ao atraso escolar, como mostrou um outro trabalho do grupo, recém-publicado na revista Epidemiology and Psychiatric Sciences.
Essa pesquisa, realizada com a mesma base do BHRC, concluiu que pelo menos dez a cada cem meninas que estavam fora da série escolar adequada para sua idade poderiam ter acompanhado a turma se transtornos mentais, principalmente os externalizantes, fossem prevenidos ou tratados. No caso da repetência, cinco em cada cem alunas não teriam reprovado (leia mais em https://agencia.fapesp.br/37419/).
“Crianças e jovens com problemas externalizantes podem ter mais chance de impacto negativo no aprendizado, no desenvolvimento social, no mercado de trabalho, aumentando assim a possibilidade de se manterem na pobreza quando adultos”, completa Ziebold.
No Brasil, a chance de um filho repetir a baixa escolaridade dos pais é o dobro da probabilidade de que isso ocorra nos Estados Unidos, por exemplo, e bem acima da média da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), grupo de 38 países ricos e emergentes. Quase seis a cada dez brasileiros (58,3%) cujos pais não tinham o ensino médio completo também pararam de estudar antes de concluir essa etapa. Entre os americanos, o percentual cai para 29,2% e na OCDE fica em 33,4%, de acordo com estudo (https://imdsbrasil.org/indicadores) do Instituto Mobilidade e Desenvolvimento Social (IMDS), que analisou as transformações educacionais entre gerações.
Por outro lado, no mercado de trabalho, as chances de os filhos alcançarem o estrato de ocupações mais sofisticadas e com melhores rendimentos aumentam à medida que os pais são mais escolarizados. Filhos cujos pais têm nível superior apresentam 3,3 vezes mais possibilidade de estar no estrato mais sofisticado do mercado se comparados à média da população e quase nove vezes mais chances do que os filhos de pais sem instrução (Mais informações em https://imdsbrasil.org/doc/Imds_Sinopse%20de%20Indicadores01_Ago2021.pdf).
Pandemia
Ziebold destaca que, como os transtornos externalizantes podem ter impactos de longo prazo na saúde e nos resultados sociais durante a vida adulta, as descobertas do estudo reforçam a importância das intervenções antipobreza logo no início da vida.
“Quando falamos que é preciso reduzir a pobreza para diminuir as chances de transtorno mental, estamos pensando na questão de uma forma multidimensional. Não é uma solução rápida. Ações imediatas, como conceder bolsa e auxílio para que as famílias tenham renda, são importantes, mas também é necessário pensar em medidas mais amplas, que envolvam a promoção de habilidades socioemocionais, a redução do estresse, o acesso a serviços de educação e saúde, incluindo a mental.”
A pesquisadora lembra que a pandemia de COVID-19 acabou aumentando o percentual de pessoas vivendo na pobreza a níveis alarmantes. Relatório divulgado pelo Unicef, órgão das Organizações Unidas (ONU) para questões da infância, estimou que 100 milhões de crianças a mais estejam vivendo em pobreza multidimensional no mundo, um aumento de 10% desde 2019.
Segundo o documento, em outubro de 2020, 93% dos países chegaram a interromper ou suspender serviços essenciais de atendimento a transtornos mentais, problemas que afetam mais de 13% das meninas e meninos de 10 a 19 anos em todo o mundo (Mais informações em https://www.unicef.org/media/112841/file/UNICEF%2075%20report.pdf). O relatório projetou que, mesmo com os melhores cenários, serão necessários de sete a oito anos para recuperar e retornar aos níveis da pobreza infantil de antes da pandemia.
O artigo Childhood poverty and mental health disorders in early adulthood: evidence from a Brazilian cohort study, dos pesquisadores Carolina Ziebold, Sara Evans-Lacko, Mário César Rezende Andrade, Maurício Hoffmann, Laís Fonseca, Matheus Barbosa, Pedro Mario Pan, Euripedes Constantino Miguel Filho, Rodrigo Bressan, Luis Augusto Rohde, Giovanni Salum, Julia Schafer, Jair de Jesus Mari e Ary Gadelha, pode ser lido em https://link.springer.com/article/10.1007%2Fs00787-021-01923-2.