A pandemia do novo coronavírus fez os olhos do mundo, como poucas vezes antes, se voltarem para a ciência. A grande expectativa é que os cientistas finalmente apresentem uma vacina que consiga frear a propagação do vírus, impedir novas mortes e permitir que as pessoas retomem a vida normal. Os pesquisadores estão correspondendo à expectativa. Já há vacinas em fase final de desenvolvimento em laboratórios de diferentes partes do mundo.

Os olhos dos brasileiros, claro, também se voltaram para a sua própria ciência. O cenário que encontraram aqui, porém, não foi tão inspirador quanto o que viram lá fora. A pandemia atingiu o Brasil no momento em que a área de ciência, tecnologia e inovação enfrenta a pior situação financeira dos últimos tempos.

“Quando a pandemia chegou, o Brasil foi pego no contrapé. Para enfrentá-la, é preciso ter dinheiro que garanta laboratórios equipados e pessoal qualificado. Em vez disso, o que temos é o desmonte de muitas das nossas instituições por falta de recursos financeiros”, afirma o presidente da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), Ildeu de Castro Moreira.

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Pela proposta orçamentária de 2021, elaborada pelo governo federal e em análise no Congresso Nacional, o Ministério da Ciência e Tecnologia, por exemplo, terá para investimento R$ 2,7 bilhões, sem contar os já esperados bloqueios que serão impostos no correr do ano. Se os parlamentares confirmarem a cifra, os cofres do ministério continuarão indo ladeira abaixo. Para o ano atual, como comparação, o valor reservado no Orçamento federal é de R$ 3,7 bilhões. No ano passado, foi de R$ 5,7 bilhões.

Embora haja algum dinheiro privado, o grosso do setor científico no Brasil é custeado pelo governo. Os cientistas trabalham majoritariamente nos institutos públicos de pesquisa e nos programas de pós-graduação das universidades federais e estaduais, em áreas tão distintas quanto as relacionadas a fármacos e agronegócio, aeronáutica e petróleo, satélite e biocombustível, meio ambiente e defesa.

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As principais fontes de recursos dos cientistas brasileiros provêm do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e do Fundo Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (FNDCT), ligados ao Ministério da Ciência e Tecnologia. Igualmente importante é a Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes), ligada ao Ministério da Educação. Todas essas fontes deverão ter menos recursos para distribuir em 2021.

“Se os cortes previstos para 2021 forem mesmo implementados, haverá impacto nos programas de bolsas, tanto na pós-graduação quanto na educação básica, e isso afetará bastante os programas de fomento à pesquisa”, alerta o presidente da Capes, Benedito Aguiar.

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Atualmente, a Capes concede bolsas a quase 100 mil pesquisadores. O CNPq financia perto de 80 mil bolsistas — quase 25% a menos do que em 2014, quando havia 105 mil bolsistas.

Ainda na esfera federal, instituições de referência também sofrem com a perda de recursos, como a Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), vinculada ao Ministério da Saúde, e a Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa), vinculada ao Ministério da Agricultura.

Os governos estaduais têm suas próprias agências de fomento à ciência. A mais tradicional delas é a Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp), que, da mesma forma que as entidades federais, está lutando para não perder verbas.

Diante do risco de a ciência ter ainda menos dinheiro em 2021, entidades da área se reunirão na semana que vem com senadores e deputados federais para mostrar o estado em que os laboratórios e as pesquisas se encontram. Os cientistas esperam convencer os parlamentares a alterar a proposta orçamentária e destinar mais recursos para o setor.

O Ministério da Ciência e Tecnologia foi criado em 1985, logo após o fim da ditadura militar. Em 1988, a atual Constituição brasileira foi uma das primeiras no mundo a dedicar um capítulo específico à ciência. Um dos dispositivos constitucionais diz que a pesquisa científica receberá “tratamento prioritário do Estado, tendo em vista o bem público”.

Desde então, o impulso mais significativo foi dado após a virada do ano 2000, primeiro com a criação de novas universidades federais e a expansão das já existentes e depois com o programa Ciência sem Fronteiras, que oferecia bolsas para brasileiros estudarem e pesquisarem no exterior. As verbas federais para o setor científico chegaram ao auge em 2015. Depois disso, só caíram. O Ciência sem Fronteiras foi encerrado em 2017.

Estudante protesta em 2019 contra corte de verbas de universidades federais (Foto: Antonio Scarpinetti)

Uma das consequências da falta de verbas é a fuga de cérebros. Para se dedicar à sua pesquisa, um bolsista de mestrado recebe R$ 1,5 mil mensais. Um bolsista de doutorado, R$ 2,2 mil. Os valores não são reajustados desde 2013. Por causa disso, muitos pesquisadores preferem se mudar para instituições estrangeiras. Outros acham financeiramente mais vantajoso simplesmente abandonar o mundo acadêmico.

É certo que a arrecadação do poder público tem diminuído nos últimos anos e que a pandemia também provoca impacto negativo na economia e nas receitas do governo. Mesmo assim, cientistas e parlamentares dizem que, havendo vontade política, é possível, sim, poupar o setor científico de grandes perdas orçamentárias. O senador Izalci Lucas (PSDB-DF), presidente da Frente Parlamentar Mista de Ciência, Tecnologia, Pesquisa e Inovação, diz:

“Os governantes, de forma geral, só atuam pensando na próxima eleição, e não nas próximas gerações. Preferem investir em programas que tragam resultados imediatos e tenham bastante visibilidade, garantindo votos. A ciência não é assim. Os resultados científicos que vemos hoje costumam ser fruto de anos de investimento e nem sempre podem ser mostrados na propaganda eleitoral. Isso ajuda a explicar o descaso com a ciência.”

Izalci é autor de um projeto de lei que proíbe o contingenciamento dos recursos do FNDCT (PLP 135/2020). Para este ano, do montante de R$ 5,2 bilhões, está prevista a liberação de meros R$ 600 milhões, ficando o restante contingenciado. O dinheiro do FNDCT não se origina do orçamento do Ministério de Ciência e Tecnologia, mas sim de parte da arrecadação de uma série de tributos federais. Entre 2004 e 2019, o fundo financiou mais de 10 mil projetos de pesquisa, desenvolvimento e inovação, inclusive em empresas como a Embrapa e a Embraer.

O senador apresentou o projeto em maio. Diante das claras dificuldades da ciência brasileira para fazer frente à pandemia, os senadores o aprovaram praticamente por unanimidade (71 votos favoráveis e 1 contrário) em agosto. O projeto agora está na Câmara dos Deputados.

Senador Izalci Lucas, autor de projeto que preserva verbas da ciência (Foto: Geraldo Magela/Agência Senado)

Na avaliação do presidente da SBPC, o que tem acontecido nos últimos governos federais é um “terraplanismo econômico” — expressão que faz referência aos negacionistas que vão contra a ciência e o próprio bom senso e dizem acreditar que a Terra é plana, e não redonda. Ildeu de Castro Moreira explica:

“Trata-se de uma visão estreita que predomina na área econômica do governo. Isso já existia no último governo e está se acentuando neste. São gestores que colocam a questão financeira acima de tudo e vão cortando recursos onde puderem, olhando apenas os números, sem se importar se os setores são estratégicos para o país. Para a área econômica, a ciência e a tecnologia são supérfluas. Tanto é assim que apenas 0,3% do Orçamento federal vai para essa área.”

Na avaliação de Marcia Barbosa, uma das diretoras da Academia Brasileira de Ciências (ABC), a ciência tem cada vez menos dinheiro público porque os brasileiros em geral simplesmente não conseguem enxergar a importância do setor:

“Até a pandemia, ninguém falava em ciência. De repente, todo mundo começou a falar. Com isso, ficou claro o quanto as pessoas não sabem o que é o processo científico. Chega a ser assustador. As fake news encontraram terreno fértil. Isso tem a ver com as deficiências das nossas escolas. A educação científica é muito pobre. Se as pessoas não sabem o que é a ciência, não a valorizam. Se elas não a valorizam, elas não cobram do seu senador e do seu deputado que a protejam. Assim fica fácil fazer os cortes de verbas.”

Atualmente, a Academia Brasileira de Ciências conduz as campanhas educativas Ciência Gera Desenvolvimento e Eu Confio na Ciência. No “novo normal” trazido pela pandemia, a entidade entende que cientistas poderiam deixar seus laboratórios por alguns momentos para ir aos colégios e aos meios de comunicação explicar de forma clara à sociedade por que a ciência é imprescindível. Barbosa exemplifica:

“As pessoas precisam entender que, se elas têm mais de 30 anos e estão vivas, isso se deve à ciência. Na Idade Média, pouca gente passava dos 30 anos. A longevidade aumentou porque a ciência melhorou a agricultura e vieram mais alimentos, produziu medicamentos e vacinas, criou o saneamento básico, trouxe conhecimento e informação. O próprio governo e a área econômica deveriam enxergar a importância da ciência. Se não fosse pelas nossas pesquisas científicas, não estaríamos extraindo tanto petróleo em águas profundas e produzindo tanta soja no Cerrado, que estão entre as maiores fontes de riqueza do Brasil. Tirar dinheiro da ciência é dar um tiro no pé.”

A Agência Senado solicitou entrevista com porta-vozes do CNPq, do Ministério da Ciência e Tecnologia e da Financiadora de Estudos e Projetos (Finep), que gere os recursos do FNDCT, mas não obteve resposta até a publicação desta reportagem.