Eliane durante evento da Viagem Literária na Biblioteca Municipal de Fartura. (Foto: Portal 014)
Eliane durante evento da Viagem Literária na Biblioteca Municipal de Fartura. (Foto: Portal 014)


Leitores e escritores farturenses puderam participar nesta semana de uma oficina e um bate-papo com a escritora gaúcha Eliane Marques, a primeira mulher negra a vencer o Prêmio Açorianos de Literatura, em 2016. A poetisa, que esteve em Fartura nesta semana para ministrar uma edição do programa Viagem Literária, do governo estadual, pôde conhecer um cantinho especial da cidade: a Biblioteca Municipal. Além disso, ela também divulgou o seu projeto Orisun Oro (do iorubá: “fonte da palavra”), que procura tornar mais conhecidos os poemas de mulheres negras da África e das Américas, e praticou a leitura e a escrita com os participantes do evento.

“Cumprimento todos os habitantes de Fartura, é uma cidade maravilhosa e que me acolheu muito bem. Estou muito feliz com a biblioteca, é linda e espaçosa”, ressaltou. Após o evento, ela conversou com a equipe do Portal 014 e contou que a oficina foi produtiva: foram lidos mais de dez poemas e os participantes também exercitaram a criação de suas próprias poesias.

Eliane havia participado também do mesmo evento em Barão de Antonina, mas por videoconferência. E foi justamente a presença física do grupo que contribuiu para a produtividade do evento em Fartura.

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“É diferente o meio utilizado para a relação poética, digamos assim. Porque estar diante de uma tela de computador, sozinha em um quarto de hotel – que foi o que ocorreu em Barão de Antonina – e as pessoas do outro lado… Há um certo corte na comunicação. E parece que as palavras pedem a circularidade que existiu aqui. Aqui em Fartura, conseguimos fazer a palavra circular sem essa quebra dada pelo meio. Essa é a principal diferença”, pontuou, antes de lembrar que, quando o encontro é on-line, nem sempre é democrático. “Na internet também tem as questões: um não tem microfone, o outro não tem câmera, ou a conexão pode ter problema… Sempre tem impossibilidades.”

A escritora se surpreendeu com as pessoas e com a biblioteca da cidade de Fartura. (Foto: Portal 014)

Foi a primeira vez que a escritora natural de Sant’Ana do Livramento (RS), divisa com o Uruguai, participou do programa Viagem Literária, do Sistema Estadual de Bibliotecas Públicas. Reconheceu que o convite foi uma surpresa para ela, mas aproveitou a oportunidade para divulgar o seu projeto que busca traduzir para o português brasileiro e tornar mais conhecidos poemas de escritoras negras africanas e latino-americanas.

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“Foi muito gratificante o retorno na leitura dos poemas, na interpretação dos poemas, no entender o poema no sentido não apenas de uma racionalidade, mas do poema como presença e de produzir a partir disso”, comentou a respeito da oficina em Fartura.

Eliane também elogiou, além do espaço físico da Biblioteca Municipal, o trabalho dos servidores e servidoras e a organização do evento. “Realmente me surpreendi”, afirmou. “Cheguei aqui e tinha dois microfones, tudo organizado para eu usar. Que a biblioteca continue assim e até melhore; adquirindo inclusive livros da literatura africana, que foi o objeto da oficina hoje.”

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Mil réis a quem (com vida) aos seus donos (família brochado) braço da fazenda.
A senhora sem fome e fortes dores no peito.

A negrinha na primeira noite de abril – em sua posse o lampião a querosene da cozinha.
Ossuda alta a cabeça guirlanda.
A boca um pote de terra.
Ainda com anjos maometanos e outras bobagens.
Atrevida. Desconhece dinheiro.

 Pelo nome justina que talvez ainda atenda.

(Eliane Marques – “E se alguém o pano”, p. 27)

Questionada a respeito de como a literatura pode nos ajudar a passar por momentos como o que estamos atravessando atualmente – com a pandemia e o agravamento de conflitos sociais, raciais e da desigualdade – a poetisa procurou não definir a poesia como a resposta para a superação das dificuldades, mas lembrou que escrever ou interpretar um poema pode nos levar a outros lugares.

“O poema como criação é importante porque nos tira de lugares ordinários e nos tira da ‘mesmisse’ da vida. O poema é importante inclusive para que a sociedade parta de um lugar para outro. A poesia provoca um furo, e esse furo; esse buraco, por ele ser vazio – estou utilizando conceitos da psicanálise –, ele permite uma criação. Porque lugares cheios não permitem nada. E é esse o lugar da poesia, de possibilitar a criação e até um novo tipo de organização social”, definiu.

A poetisa criou no YouTube o projeto Orisun Oro, para traduzir poemas de escritoras africanas e latino-americanas. (Foto: Foto: Sabrina Gabana/Divulgação)

Mulher negra e, assim como a esmagadora maioria das mulheres negras do Brasil, de origem humilde, Eliane viu nos estudos a possibilidade de mudar os rumos de sua vida. Para outras garotas e garotos pretos que cresceram aqui na região, ela deixa uma mensagem de incentivo e outra de esperança: há sempre uma brecha.

“Eu, como uma mulher preta, que conseguiu escrever, que conseguiu publicar, a mensagem que eu digo é: escrevam. E tentem publicar e socializar a mensagem de vocês; por meio do poema, por meio do romance. Não deixem que esse lugar de opressão seja toda a vida de vocês. Sempre há uma brecha nesse lugar de opressão. E essa brecha poderá conduzir a outros lugares”, continuou.

atenta e espera atenta e espera
como quem cruza a linha férrea

fundidas as peças
és o dono do teu cachorro
o dono do linho que apodrece no teu corpo
escombro e chumbo
ainda o dono das sobras
grossas duras solas soldadas na roupa

naufrágio que replanta o chão e o socorro
até que a pisada escura
que não a de um santo
marulhe as coisa e te faça novamente amo

até que a raiz daquele grito
vistorie o destino
e te ensine o saber do fogo

(Eliane Marques – “E se alguém o pano”, p. 95)

Antes de encerrar, Eliane agradeceu aos responsáveis por levá-la a Fartura e deu uma declaração sincera, de quem sempre precisou escolher bem onde pisa. “Eu apenas agradeço à Luciane [Erustes Domingues, bibliotecária] pela organização e ao Sistema Estadual de Bibliotecas também. E, de novo, me surpreendi com o acolhimento. Como uma mulher negra, eu já venho às vezes com um pé atrás, e não foi nada disso. Eu me senti muito, muito acolhida, e espero que nos outros municípios a atividade seja semelhante, como aqui em Fartura”, finalizou. Além de Barão de Antonina e Fartura, ela participa de atividades em Pardinho, Tatuí e Itapetininga.

Mais sobre Eliane Marques

Gaúcha da cidade de Sant’Ana do Livramento, Eliane Marques é poetisa, ensaísta, coordenadora da Escola de Poesia e editora da revista Ovo da Ema. Publicou os livros “Relicário” e “E se alguém o pano” e foi a primeira mulher negra a ganhar o Prêmio Açorianos de Literatura, em 2016. Advogada e formada em psicanálise, lançou com outras autoras “Arado de Palavras” e “Blasfêmias: mulheres de palavras”. Traduziu “O Trágico em Psicanálise”. Atualmente, trabalha na tradução do livro “Pregón de Marimorena”, da uruguaia Virginia B. de Salas, e finaliza o seu poemário “O poça das Marianas”.

Como já mencionado, ela criou este ano o projeto Orisun Oro, que tem como objetivo traduzir para o português brasileiro e divulgar poemas de escritoras negras africanas e latino-americanas. Conheça mais a respeito de sua trajetória profissional acessando essa entrevista à Fatto Comunicação e seu perfil no Literafro – portal de literatura afrobrasileira hospedado no site da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Eliane também foi a 117ª entrevistada do projeto “Todo Dia Delas”, que celebrou 365 mulheres no HuffPost Brasil em 2018.

Abaixo, confira no projeto Orisun Oro o poema “Lá no Água Grande”, da são-tomense Alda do Espírito Santo:

Confira a participação da escritora no TEDxLaçador: