Imagem ilustrativa. (Foto: Helena Sbeghen/Universa)
Imagem ilustrativa. (Foto: Helena Sbeghen/Universa)


Por Jéssica Etore

“Escândalo: inquérito policial apura caso amoroso envolvendo prefeito, vice e presidente da Câmara de Fartura”. Esse é o título da matéria publicada por um jornal local tratando de um caso de violência doméstica envolvendo dois vereadores no último final de semana.

O escândalo é a suposta traição da vereadora com o prefeito, o escândalo é um suposto caso amoroso, o escândalo é absolutamente qualquer coisa que indique qualquer comportamento “imoral” por parte da vereadora; o escândalo é a mulher, simplesmente.

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Antes da posse ilegal de uma arma de fogo com numeração raspada, antes do registro de uma medida protetiva em contexto de violência doméstica, antes do fato de que a mulher alegou ter sido ameaçada pelo parceiro com a arma em questão, o escândalo é a mulher. De jornais locais a grandes veículos da mídia brasileira, o jornalismo continua contribuindo para a legitimação da violência de gênero.

É comum vermos na imprensa que assédio na rua é “cantada agressiva”, o aborto é imperdoável, mas o abandono compulsório dos homens em relação a seus filhos é naturalizado e nunca questionado, o estupro é “sexo supostamente forçado”, a violência doméstica é sempre duvidável, a vítima mulher só é tratada como vítima, com sorte, depois de não restar nenhuma forma de defender o acusado.

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Entre 2020 e 2021, dados do Painel de Dados da Ouvidoria Nacional de Direitos Humanos (ONDH), tabulados pelo Instituto Santos Dumont (ISD), mostram que no Brasil o número de delitos contra as mulheres triplicou. Passou de 271.392 registros para 823.127. Embora as denúncias estejam acontecendo com mais frequência, o que indica que as mulheres estão se levantando e não estão aceitando serem tratadas de forma violenta, elas continuam sendo questionadas, continuam tendo seus discursos desligitimados, muitas vezes com o apoio da mídia, que contribui com a manutenção desse sistema machista e misógino.

Mulheres são ferramenta de marketing, são “musas” usadas em propagandas para vender carros e cervejas, são usadas para perpetuar um padrão de beleza inalcançável e, quando não estão nessa posição de embelezamento, ainda servem de ferramenta publicitária. É claro que a história de uma vereadora traindo um vereador é muito mais tragável que um caso de violência doméstica. É claro que a especulação sobre uma suposta traição como justificativa para a violência é muito mais interessante que tratar a história com os fatos que ela apresenta, crua e nua: essa mulher foi ameaçada, essa mulher denunciou um caso de violência doméstica, essa mulher solicitou uma medida protetiva por não se sentir segura junto ao seu parceiro.

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Se você ainda tem dúvidas sobre o machismo na forma que esse caso tem sido tratado, eu deixo aqui um questionamento: você leu alguma notícia sobre algum político homem ter traído sua companheira mulher? Você, com toda certeza, já ouviu rumores de supostos casos de traição envolvendo figuras públicas da cidade, mas você já leu sobre esses supostos “casos amorosos” em sites jornalísticos?

Sendo assim, se a polícia realmente está apurando um “caso amoroso” e não um caso de violência doméstica e posse ilegal de arma de fogo (como, a princípio, sugere o título da matéria), talvez caiba aos sites de fofoca, então, apurarem sobre os crimes em questão.


Jéssica Etore é mulher, feminista, estudante e representante do Movimento Organizado das Mulheres Farturenses no Conselho Municipal de Saúde. O Coletivo Feminista Nísia Floresta foi fundado em 2020, em Fartura. Trata-se de um movimento social e político suprapartidário.


Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do site.